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Diariamente.

Ele encaminhava-se para casa.

Havia cumprido suas obrigações e a vida corria sem sustos. O trabalho não era o que sonhou, mas era respeitado pelos colegas e superiores. Sua remuneração não era das piores, e lhe bastava para viver. Tinha bons amigos e uma família, se não a ideal, que não lhe causava traumas. No geral as pessoas lhe queriam bem, e costumavam ouvir o que ele tinha a dizer-lhes.

E assim o barco descia, pelo sinuoso rio da vida.

E ele encaminhava-se para casa.

Mas algo lhe aconteceu.

Um animal no meio da rua que lhe olhou de modo estranho?

O perturbador olhar do homem cego, que por natureza não lhe olhava, mas que parecia um perigoso inquisidor que lhe julgava a alma com a (não) visão?

O inquietante olhar dos que passam fome e dormem em papelões pelas rodoviárias?

Ou uma singela palavra que ouviu?

Até hoje ele não sabe.

Mas algo lhe aconteceu.

E, de repente, o ar chegava diferente a seus pulmões.

As pupilas dilatadas como o primitivo que foge do seu predador, o aumento do ritmo cardíaco, a transpiração mais forte e a respiração curta indicavam em seu corpo o aumento de adrenalina.

O mundo ao seu redor, tão costumeiro como sempre, parecia crescer e movimentar-se assustadoramente, causando-lhe sensação claustrofóbica a céu aberto.

Em seu desespero desceu do ônibus no lugar de sempre, pensou em ligar para alguém e contar o que se passava, mas as mãos não queriam obedecer-lhe. Seu instinto mandava-lhe correr para casa, mas algo o prendia àquele lugar.

E o inferno dentro dele gritava mais e mais alto.

A cada passo em direção ao abrigo seguro, aquela voz mais e mais lhe preenchia a alma.

E ele simplesmente sabia o que fazer.

Havia antes em sua vida compreendido Deus numa garrafa de vinho.

Ali estava seu refúgio, mesmo sabendo que não teria mais o entendimento quando a dor de cabeça lhe acordasse na manhã seguinte.

Sabia também que nem sempre descobriria o razão do universo.

O risco de encontrar seus demônios era grande. Mas pelo menos eles se calariam naquelas poucas horas de embriaguez.

E assim, sentindo cada dor do mundo foi embora.

Em silêncio e sem olhar pros lados chegou em sua casa.

Sabia que dali não deveria mais sair. Pelo menos enquanto eles estivessem acordados em seu interior.

Ao recostar-se para dormir, constatou que aqueles foram os quarenta minutos mais difíceis do dia.

Todos os dias.

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